22/04/2021 Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM
A certidão de nascimento não é a primeira coisa que vem à mente de alguém que está fugindo do próprio país às pressas para escapar de perseguição contra sua etnia, nacionalidade, religião, pertencimento a um grupo social, opinião política ou por graves violações de direitos humanos. Mas quando a fuga é bem sucedida, os refugiados deparam-se com um cenário no qual lhes é negado direitos básicos pela falta de tais documentos. Entre eles, o direito ao casamento.
Essa é a realidade enfrentada por muitos refugiados que, assim como Pedro Jorge, vivem hoje no Brasil impedidos de se casarem devido à quantidade de documentos que são exigidos. O angolano precisou vir ao país para fugir de um conflito familiar que quase ceifou-lhe a vida. “Sem opção e com medo, me refugiar foi a escolha que tive que fazer para me manter vivo”, lembra.
Ele conta que conheceu a companheira pouco tempo após a chegada ao Brasil, e vive hoje em uma união estável. “O meu interesse em me casar com ela não é só por motivos religiosos, já que somos cristãos e a lei Divina nos submete a isso, mas também é para que ela possa ter meu sobrenome e direito a tudo o que estou construindo com ela.” A falta de documentos, porém, torna essa realidade cada vez mais distante.
“Estou frustrado com isso de eu não poder realizar meu casamento. Às vezes nós não emigramos porque queremos, mas é por necessidade”, explica o cabeleireiro. Pedro destaca que os imigrantes são bem recebidos no Brasil, mas limitados em algumas coisas, o casamento é uma delas. “Eu acho que se criassem uma exceção para nós imigrantes podermos nos casar, e outras coisas que não podemos, já mudaria muito a nossa vida.”
Conforme o artigo 16º da Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH: “A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião. Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm direitos iguais. O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos futuros esposos. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado”.
A presidente da Comissão Nacional de Refugiados do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, Patrícia Cristina Vasques de Souza Gorisch, reconhece que o refúgio é praticamente uma fuga pela sobrevivência, e que, por isso, as pessoas não carregam todos esses documentos, e nem podem atualizá-los. “Existe uma pressa na saída que faz com que muitas pessoas em situação de refúgio saiam sem os documentos. Então é muito comum a dificuldade na questão da integração.”
A especialista lembra que a falta de documentos, em muitos casos, também impede que o refugiado exerça a própria profissão, e exemplifica com o caso de uma refugiada que era psicóloga em seu país de origem mas não podia exercer o cargo no Brasil. “Hoje a gente tem quase mil e oitocentas pessoas venezuelanas lá em Boa Vista e em Pacaraima indocumentadas, conforme relatório publicado na semana passada pelo Acnur. São pessoas que saíram praticamente com a roupa do corpo, então a gente tem uma questão aí característica mesmo do refúgio.”
Avanços
Desde 2018, refugiados podem se habilitar para se casar no Distrito Federal mesmo sem a posse dos documentos. A possibilidade é garantida pelo Provimento 24/2018, que modificou as regras dos serviços notariais e de registro com atuação distrital. Conforme a norma, o estrangeiro que se encontra no Brasil como refugiado, apátrida ou asilado, e não tiver documentos de identificação civil, também poderá fazer prova de idade, estado civil e filiação mediante a apresentação de cédula especial de identidade de estrangeiro, que é emitida pela Polícia Federal do Brasil. Além disso, também é possível regularizar o passaporte, atestado consular e certidão de nascimento ou casamento, com averbação do divórcio, traduzida por tradutor público juramentado e registrada por oficial de registro de títulos e documentos.
O provimento do DF acrescentou ainda a possibilidade da dispensa da comunicação do registro de casamento e de óbito às repartições consulares e embaixadas, se constatado pelo oficial de que são casos dentro das condições citadas. Leia a matéria na íntegra.
Para Patrícia Gorisch, o provimento é importante pois parte da premissa de que o refugiado não tem os documentos necessários. Segundo ela, o que se faz atualmente, em outras regiões do país, é registrar a união estável no cartório para, posteriormente, convertê-la em casamento. Essa conversão, no entanto, também sofre complicações devido à falta de documentos.
Além disso, por motivos religiosos, muitas pessoas em situação de refúgio não aceitam união estável. “A gente tem que respeitar a religião da pessoa, e a vontade da pessoa de estar em um casamento e não em uma união estável” Segundo ela, o DF é o único lugar que aceita qualquer um dos documentos, e o objetivo da Comissão do IBDFAM é padronizar essa situação no Brasil.
“Uma das medidas que eu acho que é importante, que a própria comissão vai fazer, é organizar essa demanda para uniformizar no Brasil, para que cartórios no Brasil inteiro possam casar essas pessoas sem essa exigência. Em um segundo momento, a medida que a pessoa em situação de refúgio pode fazer, é judicializar. Então, tanto administrativamente, quanto no Poder Judiciário buscar essa autorização para casamento”, aponta a advogada.
Questão humanitária
Para a tabeliã Priscila de Castro Teixeira Pinto Lopes Agapito, Diretora Nacional do IBDFAM, o provimento do Distrito Federal trata-se de uma questão humanitária para pessoas que se encontram em estado de vulnerabilidade, tendo em vista que, conforme o artigo 43 da Lei Brasileira de Refúgio, as instituições brasileiras devem considerar a dificuldade dos refugiados para obter e apresentar documentos emitidos em seus países de origem ou representações consulares e diplomáticas. Ela responde em parceria com Giovanna Truffi Rinaldi, Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais do 21 Subdistrito da Saúde, em São Paulo.
Segundo a especialista, medidas como essa são fundamentais para a concretização de direitos e deveres de ordem civil no país, seja para educação, saúde, entre outras. “Com essa documentação essas pessoas em situação extremamente peculiar passam a ser cidadãos de direito e conseguem garantir um mínimo de dignidade existencial em suas vidas, já que não o tiveram em sua origem. É muito importante a conscientização de todos os operadores do Direito para poder auxiliar e instruir refugiados e asilados de maneira a conferir direitos básicos e necessários a qualquer pessoa, sob regência dos Princípios Constitucionais da Igualdade, Justiça e Solidariedade.”
Atos registrais
Priscila pontua que os refugiados chegam no país em uma situação vulnerável sem documentação e muitos com uma grande dificuldade de se comunicar em idioma nacional para solucionar isso. “Como pode ser observado, existe regulamentação específica em alguns Estados, entretanto, noutros não há previsão expressa, o que pode vir a ocasionar na recusa para a prática de atos registrais, conforme visto anteriormente. Com isso, identificamos desafios concretos que essas pessoas podem vir a encontrar e que demandam uma maior atenção dos operadores do direito com a aplicação de princípios norteadores a esta situação peculiar que garanta o acesso dessas pessoas em âmbito nacional.”
A tabeliã acredita que uma normatização nacional sobre o tema pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ seria algo muito importante para todos. Para ela, o Provimento nº 104 do CNJ – que dispõe sobre o envio de dados registrais, das pessoas em estado de vulnerabilidade socioeconômica, pelo Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais, diretamente ou por intermédio da Central de Informações de Registro Civil de Pessoas Naturais- CRC, aos Institutos de Identificação dos Estados e do Distrito Federal, para fins exclusivos de emissão de registro geral de identidade -, previu pouco a respeito.
“Poderia ser pensado algo que regulamente o registro de nascimento ocorrido no Brasil de filhos de refugiados e meios de facilitar uma habilitação de casamento, onde o estado civil possa ser comprovado por testemunhas, aceitando outros documentos que a pessoa porventura tenha e que esteja de acordo com as leis de seu país de origem, conforme alguns Estados já admitem, para aplicação nacional”, sugere.
Segundo Priscila, o que precisa mudar é a mentalidade do povo e principalmente dos operadores do Direito como um todo. “Os refugiados, ao conseguirem o documento de refúgio brasileiro, não precisam de subterfúgios como o casamento ou nascimento de filhos para poderem ficar no país. O direito a ter emprego e estadia no país já lhes foi assegurado.”
“Migrar é um direito humano. Se puxarmos por nossas raízes, todos nós temos história de refugiados em nossas famílias. Os refugiados não roubam nossos empregos, muitos empreendem. E com uma política de integração correta, podemos ter até aumento do PIB, como aconteceu na Alemanha. O número de brasileiros que moram no exterior é maior que o número de refugiados no Brasil. Acabemos com o preconceito, esse é o nosso papel”, frisa a especialista.